O avanço das tecnologias digitais revolucionou completamente nossa forma de viver, trabalhar e interagir. Redes sociais, inteligência artificial, criptomoedas e a vida digital transformaram as relações humanas, gerando novos desafios para o Direito. Diante desse cenário dinâmico e complexo, tornou-se urgente repensar o marco regulatório civil brasileiro para atender às demandas do século XXI.
Recentemente, uma Comissão de Juristas apresentou um ousado anteprojeto de reforma do Código Civil, que inclui, pela primeira vez, um Livro específico dedicado ao Direito Digital. A intenção declarada é modernizar e adequar o ordenamento jurídico às novas realidades tecnológicas. No entanto, esse projeto, que parecia promissor, rapidamente tornou-se alvo de críticas contundentes por parte de especialistas renomados.
Uma das vozes mais destacadas é a da jurista Judith Martins-Costa, que classifica a proposta como um exemplo claro de "populismo jurídico". Segundo ela, o texto apresenta soluções superficiais e imprecisas para questões extremamente complexas, criando um cenário de insegurança jurídica e aplicação difícil.
Um dos pontos centrais do debate envolve os princípios gerais que sustentam a proposta. Princípios fundamentais como a dignidade da pessoa humana, privacidade, autonomia e proteção de dados pessoais deveriam guiar a legislação digital. Porém, especialistas alertam que o texto atual do anteprojeto traz definições vagas e superficiais, pouco capazes de enfrentar os desafios reais relacionados à dignidade e privacidade no ambiente virtual.
Além disso, a questão da identidade digital e da proteção à personalidade no espaço virtual emerge como um ponto crucial e controverso. A sociedade digital enfrenta situações inéditas, como clonagem de perfis, exposição indevida e danos à reputação digital. A crítica principal é que o projeto não apresenta soluções robustas ou claras para proteger efetivamente os indivíduos dessas ameaças.
Outro tema relevante é o patrimônio e a herança digital, uma realidade cada vez mais presente no cotidiano das pessoas. Ativos digitais como contas em redes sociais, plataformas de streaming e criptomoedas representam valores econômicos e afetivos significativos. Contudo, especialistas indicam que a proposta atual carece de critérios claros e eficientes para regulamentar a transferência desses bens após a morte dos usuários, deixando incertezas sobre o futuro desse patrimônio.
A responsabilidade civil por danos digitais, especialmente os causados por algoritmos e inteligência artificial, também gera debates intensos. Apesar de o anteprojeto reconhecer esses desafios, críticos apontam falta de precisão e clareza na atribuição de responsabilidades jurídicas diante dos danos causados por decisões automatizadas.
O aspecto da proteção de dados pessoais e consentimento digital aparece como um ponto-chave de articulação entre o novo Livro e regulamentações existentes, como a LGPD brasileira e o GDPR europeu. Porém, há dúvidas se o anteprojeto consegue avançar de maneira coerente e eficaz, ou se repete abordagens já existentes sem acrescentar segurança jurídica adicional.
Grande parte das propostas do Livro de Direito Digital carece de conteúdo normativo efetivo, seja por prolixidade ou por reticência. Muitos dispositivos limitam-se a afirmar que regras já existentes no Código Civil aplicam-se "também" ao ambiente digital, criando redundâncias desnecessárias e potencialmente perigosas do ponto de vista interpretativo.
Por exemplo, o anteprojeto propõe alterar o artigo 1.634 para estabelecer que os pais devem "fiscalizar as atividades dos filhos no ambiente digital", como se tal obrigação já não estivesse implícita no poder familiar. Similarmente, dispositivos sobre quitação de débitos são modificados para incluir expressamente a possibilidade de quitação "por meio digital", algo que já seria possível pela interpretação sistemática do ordenamento.
Vamos debater esse assunto. Vem com a gente!